Em março de 2021 o Leia Mulheres completa seis anos. Ao longo desse tempo, conhecemos o trabalho de muitas mediadoras do projeto, que também são talentosas escritoras.
Como uma forma de comemorar o nosso aniversário e para homenagear essas mulheres que se dedicam ao Leia Mulheres, decidimos divulgar o trabalho das mediadoras enquanto escritoras. Leia Mulheres, inclusive as que leem outras mulheres. :)
1. razão
escrever para deixar no caminho
as roupas sujas de chão
joelhos ralados de queda,
escrever
para largar o passado num canto
como um bicho que troca de pele
e durante
até se esquecer da beleza
para depois
voltar a lembrar
escrever para tirar
todos os grãos de poeira
debaixo do tapete da vida
escrever para terminar e começar,
como Shiva brincando de Deus
escrever para destruir
e criar
escrever para seguir
vez por outra olhar para trás
e conferir a ferida
o sangue que pulsava estancado
pelos passos, pelas palavras,
pelo futuro,
escrever para doer
e para deixar a dor
2. bip
desvio de sua memória
como de um tiro
que seria fatal:
me desculpo.
não é falta
de amor;
antes,
é falta de tudo
o que seria você
ocupando esses espaços
sua ausência
é o espólio maldito
desses tempos
e se sigo reto
se ouso não desviar
dessa pedra desse tiro
de saudade
choro como chorava
muito pequena,
me falta o ar e o chão
perco as memórias todas
de ser alegre
me perdoa pela dor
pelo desvio
por ter feito o que eu soube
e não ter podido evitar
o que se deu
nem com aquele quilo inteiro
de empada que te dizia,
na verdade, fique em casa,
se cuide que eu só tenho você,
como eu te disse
e agora não digo mais
me perdoa pelas dez horas
que se seguiram desde que
seu coração parou
e em que todas as tentativas
de convencê-lo do contrário
falharam
você que amava a vida
a vida que te amava
se eu estivesse lá teria te dito
não estou pronta
pra te perder,
mesmo sabendo que
talvez nunca estivesse
quando seu coração enfim
parou era muito noite já
e o meu
parou um pouco também
3. Daninha
quando cheguei aqui
tudo era mato.
tudo estava em contraluz
constante
e eu me esforçava para ver
além dos contornos
abria os olhos
mais do que sabia abrir
e só escuridão se punha
diante de mim
pois então: era tudo mato
e minhas mãos preciosas
diante da novidade de capinar
a palma da mão sangrando
e eu ali conhecendo a dor
arrancando tudo o que não devia
estar ali
para que eu estivesse
abrindo lugar
para existir
eu, que sempre tive tudo
como se fosse um direito
as mãos preciosas feridas
qualquer dia eu nem ligo mais,
vejo nítido ao meu redor
e até rio da cicatriz

Mariana Paiva é escritora, jornalista e professora de escrita. Baiana de Salvador, Mariana é mediadora do Leia Mulheres em Barão Geraldo, Campinas-SP, e gosta de pensar sobre diversidade, abrindo espaço nas leituras para mulheres periféricas, trans, negras e indígenas. Tem cinco livros publicados em formatos impressos (“Barroca”, “Lavanda”, “Canto da Rua”, “Damário Dacruz: um homem, uma surpresa”, e “Vermelho-Vida”) e contos em formatos digitais na loja Kindle da Amazon. Está no instagram como @marianapaivaescritora, onde produz conteúdo voltado para a literatura.