Canção de Ninar

Por: Sylvia Tamie Anan | Em: 9 / outubro / 2019

Uma ex-sogra minha tinha “empregado” para o trabalho doméstico uma moça que perdera o emprego como atendente de telemarketing. Como a moça era loira, de olhos azuis, vizinhas e amigas a parabenizavam por ter conseguido alguém “tão branquinha” para trabalhar em casa.

Recentemente, a professora de Economia Vivian Almeida fez, no podcast Xadrez Verbal, um comentário mal compreendido sobre a questão da emancipação profissional feminina estar ligada à presença de mulheres de outra classe social que se ocupem dos filhos e do trabalho doméstico. São dois exemplos dos muitos que me ocorreram durante a leitura de Canção de Ninar, de Leïla Slimani, que se apresenta como uma narrativa de suspense, mas que rapidamente transcende esta descrição.

Não se trata de spoiler: na primeira página, já sabemos que a babá desta família matará as duas crianças. O romance se concentra, então, em construir a história do casal, espremido, como é típico em grandes metrópoles como Paris, em um apartamento minúsculo com dois filhos, e o surgimento desta babá que parece ter poderes mágicos — em pelo menos uma ocasião, ela é comparada a Mary Poppins. Louise parece não apenas dominar a arte de cuidar das crianças, como também o próprio espaço do apartamento, que ela torna maior, mais aconchegante, mais eficiente. Ela é onipresente e, ao mesmo tempo, invisível, deslizando pelos cantos, escondida entre a mobília. Tudo nela é pequeno, delicado, silencioso.

Embora seja construída como uma relação habitual, velha conhecida de um país como o Brasil – basta lembrar a babá empurrando o carrinho atrás da família, em pleno domingo, a caminho de um dos protestos pelo golpe contra Dilma – a autora, que é franco-marroquina, insere uma nota dissonante nesta relação: Myriam, a mãe da família, uma bacharel em Direito que contrata a babá para poder voltar à profissão, é de origem árabe – o marido, francês, chega a recear que ela ensine árabe às crianças. Louise, a babá, é francesa. De rosto indefinido, caracterizada apenas pela gola impecável do vestido e pelos sapatos gastos cuidadosamente preservados (como se não houvesse nada entre uma coisa e outra, entre a parte de cima e a de baixo), ela chama a atenção no parquinho onde as crianças do bairro passam a tarde, por ser a única babá branca.

Aos poucos, o leitor se vê fazendo uma série de perguntas que jamais ocorrem ao casal, Myriam e Paul: quem é realmente Louise, onde vive, o que faz enquanto não está com os seus patrões. E, na melhor tradição flaubertiana, Leïla Slimani enriquece a personagem com pequenos detalhes, perscruta seus pensamentos (até mesmo a ausência deles), segue-a uma noite ou outra até a sua própria casa, quase por acaso, e estabelece a moldura para a tragédia final. Esta, por sua vez, continua tão repentina e chocante quanto no início: a autora não normaliza, não “explica” nada. O terror não é o anormal, não é o fato que choca os vizinhos e faz a polícia se mobilizar: o terror está incrustado no cotidiano, em cada gesto, na dependência servil.

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