A telepatia são os outros

Por: Pilar Bu | Em: 11 / outubro / 2019

No meu imaginário, a telepatia sempre ocupou um lugar de representação vinculado à tecnologia. Um monte de eletrodos colados na cabeça, capazes de decodificar o pensamento e jogá-lo num computador cheio de ferramentas inimagináveis. Achava também que o futuro nos faria andar em carros voadores e que poderíamos aparatar e desaparatar em vários lugares: bem, nada disso aconteceu como eu sonhava.

Quando eu li A telepatia são outros, da Ana Rüsche, eu entendi que a ficção científica e a magia, podem estar em um lugar muito mais simples, e genial exatamente por isso.  A telepatia, no livro, é acessada pela manipulação de ervas, uma fermentação bem específica. Eu que conheço Ana Rüsche há tempos e sei que ela trabalhou com cerveja (aliás trabalhamos juntas, mas ela faz cerveja) e só penso: danada, está afiada na pesquisa mesmo. Essa fermentação, não é um chá propriamente dito, faz com que as pessoas se conectem em princípio de um jeito muito curioso: acessando suas vergonhas, desvelando uma nudez do eu em desamparo num mundo em que é difícil mesmo errar.

Essa obra tem vários elementos que eu gosto: uma mulher interessante em processo de gestação de si que sai em jornada em busca de conhecimento; a força do encontro entre as pessoas; a reverência às sabedorias antigas e ancestrais; desconstrução dos estereótipos de gênero; um latin lover sacaninha pra gente morrer de amor e ódio; um grande vilão; um amor lésbico; e abalos sísmicos metafóricos e reais. Olha, não tem como eu não amar esse livro.

A começar pela protagonista. Irene é uma mulher negra de 50 anos, fisioterapeuta, que mora em Taboão da serra e acabou de perder a mãe. Acho importante e ousado que ela seja uma mulher que está encontrando seu lugar na maturidade, alguém tão acostumada em cuidar, mas que precisa se conhecer e ser cuidada. Irene mergulha nessa experiência de tal forma que o mergulho que damos com ela é orgânico, inevitável, nos abre para um processo de aprendizagem pela literatura como ferramenta da palavra mesmo, da construção de sentidos.

Acho bem especial que a história esteja em diálogo com uma perspectiva latino-americana de protagonismo. É comum que se pense a ficção científica e a fantasia como redutos de narrativas eurocentradas ou americanizadas, mas A telepatia são outros prova a importância de histórias de qualidade contadas em contexto de latinidade. O Chile, palco dos acontecimentos da trama, é um país construído sob a representação metafórica da ancestralidade, que possui um horizonte místico profundo. É um guardião de uma sabedoria outra, fora de um lugar comum de enunciação. O instituto Sembrar não é apenas um lugar de autoconhecimento, mas de partilha, de tensão do discurso posto.

O livro não é apenas bem escrito, é uma aula de narrativa tão bem amarrada que ata casas pelo teto, com construções imagéticas incríveis, metáforas poderosas, personagens femininas fortíssimas e o desejo de sair por aí mudando a vida, para transformar planos e criar conexões com a mente de outras pessoas.

Por fim, a dica que eu dou é que você leia o livro ouvindo Violeta Parra sem parar (ainda crio uma playlist para esse momento de leitura), afinal, não Irene não pode entoar esse mantra sozinha: Gracias a la vida que me ha dado tanto!

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