Metade cara, metade máscara

Por: Samita Barbosa | Em: 14 / janeiro / 2019

“Que faço com a minha cara de índia?” É a pergunta que nos faz Eliane Potiguara, escritora, professora e ativista indígena de origem Potiguara, povo que é originário do nordeste brasileiro. A pergunta é um verso que se repete ao longo do poema Brasil, um dos que iniciam o livro Metade cara, metade máscara, pergunta esta que nos atinge em um tom de urgência, o qual toma conta de nós ao longo da leitura do livro. E é uma pergunta realmente direcionada ao Brasil, título do poema e destinatário desse grito urgente que Eliane Potiguara nos traz para chamar a atenção sobre a questão indígena que está aí presente em nossa realidade, mas que foi sempre tão apagada pela nossa história.

Quando começamos com o Leia Mulheres em Uberlândia, ainda em Março de 2017, a proximidade do dia do índio me lembrou de que eu nunca tinha ouvido falar de nenhuma escritora indígena. Fui procurar, e a intenção era lermos algum título já em Abril, mas foi quase impossível encontrar algum que estivesse disponível. Entrei em contato diretamente com a Eliane, e ela tinha somente um exemplar do livro, lançado em 2004. Não daria pra fazermos o encontro, e só deu pra fazê-lo em Maio, com o lançamento da segunda edição no início de 2018, mas na época resolvi comprar o exemplar que ela tinha assim mesmo, e já de início fiquei fascinada com a leitura desse livro tão potente! Ao adentrar na obra já vamos nos dando conta das complexidades que a questão inevitavelmente traz. A autora nos lança aos diversos problemas que os povos indígenas tem sofrido ao longo dos séculos, e somos inevitavelmente atingidos por essa dor de tanto tempo de silenciamento e marginalização.

Eliane Potiguara ao longo do livro, de maneira muito interessante, mescla narrativas, relatos pessoais, artigos e poesia, e vai a cada capítulo nos levando por seu percurso pessoal como mulher indígena e por sua trajetória como ativista, articuladora e defensora dos povos indígenas no Brasil e no exterior desde os anos 70, nos dando também, a partir disso, um panorama da história dos movimentos indígenas dentro da história do Brasil.

Chama a atenção na escrita de Eliane, além dessa mescla de gêneros e estilos de textos, a forma como ela organiza o livro, nos conduzindo por entre o real e o ficcional ao longo dos capítulos, nos levando pela trajetória dos povos indígenas em paralelo à saga das personagens Cunhataí e Jurupiranga. Assim, acompanhamos a trajetória da mulher indígena através também da trajetória de Cunhataí, personagem que vai dando voz e forma ao que podemos sabemos que pode ter sido a trajetória de tantas outras mulheres indígenas.

E os poemas são ainda um caso à parte, chamando a atenção e trazendo uma fluidez muito interessante na leitura do livro. Em Identidade Indígena, poema que a autora data de 1975, assim como em outros ao longo do livro, vemos conjugada essa realidade do indígena na atualidade, da falta de territórios, de espaço na nossa sociedade e sendo ainda forçado há séculos a anular sua cultura e suas origens; com o enorme sentimento de resistência, que apesar de tudo ainda sobrevive e sobreviverá o quanto for preciso para que um dia o reconhecimento de sua identidade e de seu espaço na sociedade aconteça.

Resistência parece ser uma palavra chave na escrita de Eliane Potiguara, e ler obras como esta nos faz perceber como ainda é pouco o que nos chega ao conhecimento sobre essas diversas culturas e esses diversos povos, e o quanto nossa perspectiva, há mais de 500 anos, ainda continua sendo a do colonizador e da história oficial, na qual o indígena nunca teve realmente voz. Metade cara, metade máscara, nos faz pensar sobre como é ser esse indivíduo que se vê obrigado a oscilar entre o mundo indígena e o não indígena e sobre o que é ser uma mulher indígena, principalmente dentro da nossa sociedade, através de um relato poderoso, forte e bonito.

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