Neblina

Por: Juliana Gomes | Em: 6 / janeiro / 2017

“Tudo era mudo e nessa mudez recebi o mistério de grandes elementos da vida e da morte”

Neblina é o segundo romance de Adalgisa Nery, publicado em 1972. Atuante na política, na literatura e no jornalismo, a escritora se casou aos 16 anos com o artista plástico Ismael Nery e conviveu com poetas como Jorge de Lima, Manuel Bandeira e Murilo Mendes. Sua convivência era basicamente masculina, o que fez com que sua obra se tornasse pouco difundida nos meios acadêmicos essencialmente masculinos. Seu primeiro marido não fazia questão de colocá-la em destaque, pelo contrário, parecia a favor dessa subordinação.

“Os seus antagonismos, criados contra você própria, desaparecerão, para que você possa flutuar além e acima de indecisões, amarguras, silêncios e indiferenças.” pág. 27

No ano da publicação de Neblina, Adalgisa estava em seu segundo casamento, com Lourival Fontes. Na época, a ditadura militar estava instaurada no Brasil, e devido ao seu posicionamento político, seu terceiro mandato como deputada da Guanabara havia sido cassado. Sua carreira jornalística chegava ao fim.
Passando por várias dificuldades, a escritora precisou pedir ajuda ao famoso apresentador Flávio Cavalcanti, claramente conservador e simpático ao regime militar, mas que no entanto escondia dissidentes perseguidos pela ditadura. Ele a recebeu em sua casa em Petrópolis. A militância política e a cassação, a falta de dinheiro, a influência e a amizade com Flávio podem ter contribuído para que Neblina tenha passado despercebido por tanto tempo e até mesmo para que Adalgisa Nery tenha sido quase esquecida na história da literatura brasileira.

Na belíssima apresentação de Ramon Nunes Mello para a nova edição de Neblina, o poeta e escritor rejeita a ideia de que o romance tenha traços autobiográficos. Discordo, pois em Neblina a narradora emudece e suponho que a perda de voz possa ter relação com sua vida pessoal, não só como uma metáfora da perda de direitos políticos e de seu trabalho como jornalista, mas porque ao falecer em 7 de junho de 1980, Adalgisa apresentava problemas de comunicação. No mais, o texto de Ramon traz outras informações que mostram como esse romance é denso e cheio camadas, apesar das suas poucas páginas.

O romance é narrado em primeira pessoa e começa com a morte da narradora. Nitidamente influenciada pelo espiritismo (a autora estava estudando Chico Xavier), o romance conta a história de uma mulher que sofre uma complicação cirúrgica e fica acamada e emudecida. No início do livro a narradora presencia a própria morte e como o marido, a irmã, seu pai e sua mãe se aproveitam da situação. Tendo lapsos de memória enquanto entende a mudança de sua condição, ela percebe o quanto foi quanto foi negligenciada pela família. Ela chegou a ser colocada num quarto nos fundos da casa, enquanto seu quarto foi alugado para um casal. Esse casal consegue conversar e entrar na intimidade da narradora (nenhum dos personagens possuem nomes próprios) e ao mesmo tempo em que ela conta o que lhe aconteceu, levanta questões morais e éticas. Talvez, na época, o romance fosse o único espaço no qual a autora pudesse fazer as indagações que considerava necessárias. O livro me lembrou muito A redoma de vidro de Sylvia Plath, pelos questionamentos e pela analogia com a palavra “neblina”, que deixa embaçada e nebulosa nossa visão sobre algo.

“Se eu tentasse narrar estas sensações, certamente ninguém, da minha família, acreditaria na minha verdade vivida e sofrida com realidade e até mesmo se envergonhassem de ser eu um de seus membros, É mais fácil qualificar um mistério, de loucura do que analisar suas raízes.” pág. 51

Um retrato de um período de ilusão ou da desistência da autora para com a situação do país e dela como mulher. Um grito em meio ao silêncio da narradora com tudo que acontecia. Apesar de um romance que de certa forma levanta várias bandeiras, Adalgisa sempre teve um perfil mais conciliador apesar da violência do primeiro marido (aqui você pode ler mais a respeito).

Em Neblina não há redenção, tampouco vingança. O romance é linear nas lembranças da narradora e da vida normal de uma família de classe média brasileira na década de 1970. A escritora Cecília Prada nos convida a vencer o preconceito e olharmos para autora além de sua amizade com Flávio Cavalcanti, você pode ler o artigo aqui . Foi o que tentei fazer. Neblina não é uma leitura fácil, mas se possível, comece a ler Adalgisa Nery por ele e depois vá para A Imaginária, um romance totalmente autobiográfico que mostra como um relacionamento abusivo pode te destruir sem que você perceba.

“Agora, eu o via sem as qualidades que o amor empresta. Com a minha última lágrima já entrando no silêncio dos mundos, pensei:
‘Pior do que a ausência do amado, pior do que a solidão dos desertos é a ausência do sentimento do amor’.” pág. 183

 

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