Ciranda de Pedra

Por: Letícia Zampiêr | Em: 4 / abril / 2016

“Devia ser bom, também, nascer passarinho. Passarinho não tem essa complicação de pai e mãe assim separados. E passarinho não fica louco nunca. Franziu a testa: ou fica?”

“Ciranda de Pedra” foi lançado em 1954 e é uma das obras mais aclamadas da autora Lygia Fagundes Telles. O romance acompanha a jovem Virgínia, filha de pais divorciados cuja mãe sofre de um transtorno mental não-especificado, mas que se assemelha bastante com a esquizofrenia. O livro se divide em duas partes, uma primeira, onde acompanhamos a infância de Virgínia até o momento em que seu pai a envia para um internato e uma segunda, após a conclusão de seus estudos, quando ela volta para a casa do pai.

Quando o livro começa, ela vive com a mãe e o padrasto, enquanto as irmãs, Otávia e Bruna, vivem com o pai, Natércio. O relacionamento dentro da casa não é dos mais fáceis: ela culpa o padrasto, Daniel, pela separação dos pais, muito por influência das irmãs; sofre pela doença da mãe, que passa a maior parte do tempo no quarto, separada da realidade; se ressente por não ter as mesmas coisas que as irmãs, uma vez que Daniel teve que parar de atender como médico para cuidar da esposa; sente pena do pai, que foi abandonado; e, apesar de não ser expresso claramente no livro, tem medo de que seu futuro seja parecido com o da mãe.

Em certo ponto do livro, é chegado a um consenso de que é melhor para a menina se mudar para a casa do pai. Até então, Virgínia tinha uma visão idealizada do pai, como um homem bom, carinhoso e que a amava verdadeiramente. Dessa forma ela se frustra ao encontrar um homem reservado, crítico e pouco paciente.

Com a mudança, Virgínia se aproxima do grupo de “amigos” que, até então, só conhecia de suas visitas. Amigos entre aspas porque nenhum deles se conhecia verdadeiramente, todos usavam uma máscara. Otávia, a artista talentosa que vivia dentro da própria cabeça, Bruna, a religiosa conservadora e recatada, Conrado, o cavaleiro saído dos romances clássicos, Letícia, a esportista reservada, e Afonso, o poeta malandro. A ciranda de pedra. O problema é que Virgínia não só aceitava essas máscaras como verdadeiras, mas também criava versões idealizadas delas. Seu maior sofrimento era se sentir fora da Ciranda.

Depois de uma série de acontecimentos, Virgínia pede ao pai para ser matriculada no colégio interno em regime integral. Assim, anos se passam sem que ela veja a família mais do que algumas poucas vezes. No entanto, quando termina seus estudos, a menina, agora mulher, se vê obrigada a voltar para a casa do pai. E é aí que começa a segunda parte do livro.

Virgínia retorna com um ar de novidade, madura, bonita e inteligente, logo se vê no centro da Ciranda, que pouco mudou. Lentamente as imagens idealizadas que tinha daquelas pessoas começam a se desfazer. Todos estão cansados demais para manter suas máscaras. Virgínia, ao mesmo tempo em que sente alívio e vê de maneira irônica as verdadeiras personalidades dos “amigos”, mantêm a tendência natural de tentar fazer parte da Ciranda, e uma série e decisões ruins surgem disso.

O livro pode ser considerado um representativo das relações humanas, das tentativas de criarmos personagens que, na maior parte das vezes, não sobrevivem à nossa própria natureza. A descoberta de Virgínia é a mesma pela qual passamos ao atingirmos a vida adulta e de repente nos darmos conta que sabemos tanto quanto antes, ou até menos. É a sensação de vazio de descobrir que talvez não exista um sentido maior na vida, de que, na maioria das vezes, as pessoas são egoístas e que ninguém é realmente aquilo que finge ser. É um livro atemporal, que trata de sentimentos universais e de experiências com as quais qualquer pessoa pode se identificar. Tudo isso com a escrita simples e deliciosa da incrível Lygia Fagundes Telles.

‘Ouça, querida’, disse Otávia certa vez, ‘não fique assim com essa mentalidade de donzela folhetinesca, não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Não há gente completamente boa nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível. O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta. Às vezes a gente melhora. Mas passa.’