Ana de Amsterdam

Por: Michelle Henriques | Em: 30 / março / 2016

“A tristeza em mim é um estado latente. Conheço-a desde sempre. Cresceu comigo. É uma espécie de melhor amiga que se impõe nos meus dias. De vez em quando, a amiga-tristeza hiberna dentro do meu corpo durante longos períodos. Acomoda-se num canto qualquer e dorme, enroscada. Oiço-lhe o ressonar, brando e úmido, de animal manso. Não me incomoda, mas sei que está lá. Outras vezes, a amiga-tristeza desperta e, como animal acicatado, transforma-se em fúria, ira e dor. É uma dor invisível, de tal forma intensa que se sobrepõe a tudo e a todos. Como se mata uma amiga, a melhor, que vive dentro de nós?” (pág. 22)

Foi-se o tempo em que literatura publicada na internet não era considerada de qualidade. Chegamos a um consenso de que a internet é apenas um veículo para publicação de um texto, assim como um livro ou uma revista. E dessa forma o talento da moçambicana Ana Cássia Rebelo foi reconhecido. Nascida em 1972, mudou para Portugal aos cinco anos. Atualmente mora em Lisboa e trabalha como advogada.

Em 2006 ela criou o blog “Ana de Amsterdam” (nome retirado de uma música de Chico Buarque) para falar dos percalços do dia a dia, de como é viver com a depressão, trabalhar, cuidar dos filhos, se relacionar com a família, marido e amigos. O jornalista e crítico português João Pedro Jorge fez uma curadoria do blog e reuniu alguns textos, que estão reunidos no livro também chamado “Ana de Amsterdam”, recém lançado no Brasil pela Biblioteca Azul.
Além de escrever sobre sua depressão, Ana Cássia também conta um pouco de sua família, das suas origens em Goa, da saudade de sua vó. Ela também é uma narradora observadora, comenta algo sobre uma mulher que viu na rua, conta histórias a respeito de parentes e pessoas de seu convívio. Assim vemos que ela vive uma vida “normal”, apesar do peso da depressão.

Sua escrita é muito direta e crua, ela fala de forma fria sobre sentimentos, principalmente sobre a falta de desejo sexual e da repulsa que sente do marido. Em determinadas passagens ela fala sobre seu corpo machucado, sobre corrimentos, sobre pus e diz que está apodrecendo. Ela escreve de tal forma em que se é claramente possível imaginar aquele corpo em um estado de quase decomposição.

A autora, em mais de uma passagem, fala sobre seu desprezo pelos homens, os chama de “merdosos e cobardes”, diz que a psicopatia é algo do sexo masculino. Em momento algum do livro a autora se diz feminista, mas sua fala denota claramente isso. Não fica clara uma aversão aos homens, mas sim um tom de cansaço.

Ana Cássia explora um lado mais obscuro da depressão: a maternidade. Julga-se que a maternidade é um mar de rosas, em que a mãe está o tempo todo a sorrir diante de seus filhos. A autora mostra em diversas páginas a dificuldade que é amar seus filhos, vê-los crescer e ao mesmo tempo sentir essa tristeza dentro de si. Ela diz: “Nunca poupei os meus filhos ao meu sofrimento. Partilho com eles, para horror de muitos, a solidão e a angústia.” Karl Ove Knausgård em “A morte do pai” diz algo parecido, sobre amar seus filhos, mas não ver neles o sentido da vida. Para um homem é fácil dizer esse tipo de coisa, ele é chamado de corajoso e honesto. Quando uma mulher diz algo semelhante, é tida como uma má mãe. Ana Cássia, mais uma vez em sua escrita honesta, trata friamente da sua relação com os filhos.

Como dito antes, é uma coletânea de textos do blog, então a leitura não é corrida. Há um corte de assuntos, você mal se recupera de uma passagem em que ela descreve algum momento de tristeza, e já tem outro trecho tratando de outro assunto pesado. Não é uma leitura fácil e não tão fluída, mas é sincera em sua crueza. Há certo voyerismo, como se fosse a leitura de um diário secreto, de verdades não tão facilmente expostas aos outros.

A comparação com Sylvia Plath é justa. Em seu autobiográfico “A Redoma de Vidro”, Plath descreveu como era viver triste, como era se auto sabotar e lidar com o mundo ao redor enquanto se afogava em angústia. Ana Cássia fez o mesmo com uma linguagem mais crua, e talvez mais próxima de seus possíveis leitores atuais.

“Habituei-me à tristeza, que é como a solidão, fere, mas deixa em nós qualquer coisa, bela e única, que não se sabe explicar. Quem não tem dentro de si alguma tristeza e solidão não é gente.” (pág. 113)