Meio sol amarelo

Por: Leia Mulheres | Em: 29 / janeiro / 2016

“Meio Sol Amarelo” não é apenas sobre a guerra Nigéria-Biafra que ocorreu em 1967-1970. Não é apenas sobre as consequências de um país que tenta se construir após anos de colonização. Não é apenas sobre preconceito, machismo, corrupção. Não é apenas sobre traição. Não é apenas um romance.

Segundo livro da premiada escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “Meio Sol Amarelo” (Companhia das Letras, 2008, tradução de Beth Vieira) nos leva até os anos conturbados 1960/1970 de uma Nigéria dividida em tantos pedaços e conflitos que pouco vemos aparecer nos livros de história.

Mergulhamos em uma parte da história da Nigéria de um ponto de vista muito preciso e carregado de emoção. Chimamanda segue sua narrativa nos apresentando os vários lados de uma única história: pela visão de Olanna, uma jovem da alta sociedade de Lagos que se torna professora universitária e vive com Odenigbo, um matemático com ideias revolucionárias; pela visão de Ugwu, um garoto de aldeia que se muda para a capital para trabalhar para Odenigbo e tenta se adaptar a rápida transição e transformação de sua realidade local; e pela visão de Richard, o branco, oyibo, jornalista que deseja ser escritor e é apaixonado pela arte Igbo-Ukwu.

Mesmo com a narrativa apresentada pela visão desses três personagens, seria um tanto supérfluo dizer que eles são os protagonistas deste romance. Talvez seja a guerra, os conflitos étnicos, ou tudo isso em si. Um verdadeiro cesto de mãos.

A narrativa não segue um tempo linear, o que para mim acaba por ser fascinante. Entramos na história no início dos anos 60, quando a Nigéria tornou-se independente, pela visão de Ugwu. Em seguida mergulhar em uma guerra civil que resultou num massacre que muitas vezes é ignorado pelo mundo. Muitas mesmo. Após a independência, a gestão do país alternou-se entre governos civis democraticamente eleitos e ditaduras militares.

Através de Ugwu percebemos uma parte da sociedade que precisa parar de estudar para trabalhar e ajudar a família. O jovem com pouca instrução, por volta de 12 anos, se muda para a casa de Odenigbo para ser seu criado. Nesse novo espaço ele tem a oportunidade de estudar nas horas vagas. E o primeiro ensinamento que recebe de seu Patrão é:

“Este aqui é o mundo, se bem que as pessoas que desenharam o mapa resolveram pôr a terra deles em cima e a nossa, embaixo. Mas não existe um em cima e um embaixo, entende?”

O jovem Ugwu passa então por tantas transformações, processos, questionamentos religiosos, sociais e científicos que chega a sentir literalmente na pele. Sentimos junto com ele a angústia e a dor que sua mãe sente no peito, sentimos a vergonha de velhos hábitos familiares, sentimos o desejo despertando no corpo juvenil, sentimos o medo da guerra.

Morar na cidade é o fim da inocência que a infância nos guarda. Ugwu é esperto o suficiente e conforme a narrativa segue percebemos seu amadurecimento e vínculo que acaba por criar com Olanna e Odenigbo.

Olanna é nossa voz intermediária entre a vida na aldeia e a vida na cidade. Ela, sendo filha de um grande empresário nigeriano contou com boas oportunidades por toda sua vida. Não cresceu em uma aldeia, mas mantinha contato com os tios que moravam em Kano. É um contato um tanto superficial, Olanna muitas vezes se esforça para ser aceita entre seus parentes de Kano. Sua irmã gêmea, Kainene, a critica muito por esse lado “bonzinho”, de sempre querer agradar. Kainene, apesar de suas falas sempre serem narradas por Olanna ou Richard, é uma personagem forte, encantadora e enigmática. Richard se apaixona por ela e o relacionamento dos dois é uma montanha-russa.

Através de Olanna e também de Kainene, entramos para a discussão do conflito étnico entre Ibos e Hauçás. Um conflito que já existia desde antes da colonização e, segundo alguns historiadores locais, foi usado pelos britânicos. Nesse ponto da história não há um lado para defender ou quem acusar. Deparamo-nos no meio de uma guerra civil onde as grandes nações apenas sentaram e esperaram uns matarem aos outros. E como sempre, tiravam proveito ao fornecer armas para o lado que rendesse mais lucro.

Chimamanda nos apresenta uma parte sangrenta da história da Nigéria, não poupa os detalhes e não romantiza a morte. Não há o que romantizar. A autora nos bombardeia com tantos questionamentos, com tanta dor que cheguei a me perguntar em quão pouco sabemos sobre um país tão rico em tudo. Que em meio à guerra, após um ataque aéreo, são capazes de levantar e cantar.

É uma história que incomoda, cria um nó na garganta, te faz discutir com os personagens, te faz pesquisar sobre o significado e sonoridade das palavras, te faz pesquisar sobre a arte, sobre a cultura, sobre os patrimônios históricos. Pois sabemos pouco ou nada.

Richard é o oyiboque se apaixona pela arte Ibgo-Ukwu e por Kainene. Ele se porta mais como um personagem observador. Em alguns momentos tenta tomar atitudes, tomar partido, fazer parte dos que querem que Biafra seja livre. Mas acaba sendo resumido em como o amante branco de Kainene. Ele se enxerga desse modo e se comporta como tal. Seus questionamentos internos são interessantes. Ele também passa por processos de desconstrução. Em momentos como ser o único branco em uma reunião de amigos na casa de Odenigbo onde menosprezam sua opinião. Ao jantar com os pais de Kainene. Ao querer aprender a língua Ibo.

Ele passa então a ser, talvez, o personagem que nos dá a noção de tempo e fatos históricos ao escrever seu livro. É a narrativa a qual estamos acostumados a ler. Podemos observar em várias partes do romance algumas anotações de Richard sobre o processo de construção de seu livro. Vemos o tempo interferindo na vida dos outros personagens, da guerra e do próprio Richard. Sua convivência com Kainene e suas pesquisas sobre a cultura Ibo o tornam um personagem essencial para apresentar o desleixo e ignorância dos países que viraram as costas para Nigéria após anos de colonização.

“Meio Sol Amarelo”, baseado em fatos reais transcorridos durante os anos de 1960 é sobre tantas histórias que se entrelaçam, é sobre nossa história, sobre nossos conflitos internos ou externos. Chimamanda nos apresenta muitos ângulos da mesma história e nos permite fazer parte dela, onde não há vencedores ou perdedores. Onde há apenas pessoas e as escolhas que cada um tem a liberdade de tomar para si.

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Ágda Santos

Livreira, escritora e feminista negra. É uma das mediadoras do #leiamulheres de Boa Vista.