Um útero tem o tamanho de um punho. Uma mão fechada, cerrada, que pode significar desde força até raiva contida. Um punho dá socos, um punho cerrado diz “Yes, we can do it”. Quando li o titulo do livro de poesias de Angélica Freitas (Cosac Naify, 2012) logo fui acometida pela lembrança de uma frase dita em uma aula de sexualidade, numa longínqua quinta série, perto do fim dos anos 90. O dado que definiria o tamanho do órgão característico do gênero feminino se instalaria em algum canto do cérebro para fazer sentido uma década e meia depois. De forma estranha porque seria através de um livro de 96 páginas, de poesia e com aquela imagem de um órgão representado de “braços abertos”, esticada no quadro da sala de aula e com música de fundo composta por pequenos risinhos infantis.
Poesia tem que atacar fundo, mexer com o íntimo, me tirar do lugar comum, lembrar-me por que estou aqui. Gosto das explosões céticas de Álvaro de Campos, da melancolia ácida de Sylvia Plath e da solidão imaginativa de Emily Dickinson. E a Angélica Freitas também me tirou desse lugar. Marcos Siscar tinha conseguido esse feito há alguns anos finalizando uma poesia com “Perdão, mas eu matava”, falando da violência do cotidiano. Mas Angélica trouxe algo ainda mais íntimo, ela trouxe a condição de ser mulher em um mundo cheio de minorias, mas que sempre haverão muitas mulheres nessas minorias.
“Um útero é do tamanho de um punho” se apresenta de forma arrebatadora, logo na capa que deixa clara alguns remendos. As imagens montadas são fotografias de peças do trabalho “Indícios” da artista Ana Maria Maiolino. A falta de sincronia das costuras, verdadeiros vestígios aqui e ali, ora pretas ora vermelhas, passando umas por cima das outras, mostrando que um rasgo raramente é em linha reta, lembrando que as cicatrizes destes são eternas, mesmo que apenas de forma afetiva.
Uma mulher é uma série de rasgos, cicatrizes. Eles abrem e se fecham. As cicatrizes são memórias que permanecem e doem em dias cinza. Não que homens não tenham cicatrizes, mas na história desse mundo ter um útero nunca foi questão de orgulho. Você já ouviu um pai dizer “É um útero! Vejam, minha menina! Ela tem grandes trompas, elas são fortes.”. Úteros não são ostentados como um pênis viril, são apenas um punho fechado que quando não útil é simplesmente descartado. A mulher simplesmente perde o posto quando decide não preencher o punho com vida. Mas tudo bem, ela ainda tem seios, ela ainda tem um traseiro. A vida continua.
queridos pai e mãe
tô escrevendo da tailândia
é um país fascinante
tem até elefante
e umas praias bem bacanas
mas tô aqui por outras coisas
embora adore fazer turismo
pai, lembra quando você dizia
que eu parecia uma guria
e a mãe pedia: deixa disso?
pois agora eu virei mulher
não precisa me aceitar
não precisa nem me olhar
mas agora eu sou mulher
As portadoras de um útero propostas por Angélica Freitas nem sempre nasceram com um, nem sempre contaram com o artigo feminino na frente de seus nomes, muitas delas decidiram apenas ser uma. Ato de coragem decidir ser uma mulher e nos breves poemas de Angélica muitas são os atos de coragem de mulheres que fogem de estereótipos femininos e de outras que carregam esse fardo.
Apesar de escrever de dentro do contemporâneo, Angélica consegue ser sucinta e direta em tratar de situações de uma historiografia da condição da mulher. Em “Uma Canção Popular (Séc. XIX-XIX)”, em apenas três versos, Angélica consegue colocar em cheque a questão da mulher e a loucura durante o séculos 18 e 19 – e nas primeiras décadas de XX, usando referência casos famosos como de Zelda Fitzgerald -.
Uma canção popular (séc. xix-xx):
uma mulher incomoda
é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam
loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas
são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes
interna, enterra
Angélica Freitas não compôs o livro para ser objetivamente feminista, e isso é perceptível principalmente se a primeira leitura do livro – acredite, é necessário fazer muitas, não por que o livro possa ser difícil mas porque ele ganha muitos significados com o passar do tempo – for descompromissada e os poemas irem se desvelando como cenas do cotidiano. Aí reside um dos maiores charmes de Angélica Freitas em “Um útero é do tamanho de um punho”. Ela chega devagar, sem métricas, sem regras e quando você percebe o poema te arranca lágrimas. É a sua dor, é a dor das mulheres do passado e é a dor das mulheres ao seu redor. São brincadeiras que contam a história de um casal de lésbicas entediadas, a discussão em torno de um vestido vermelho, que aos olhos dos outros, sempre tem um motivo para ser usado e é uma busca no Google sobre o que uma mulher realmente quer. A mulher é uma construção, não se nasce, se torna. É assim que tem que ser, com ou sem risadinhas no fundo da classe, afinal, eles vão ter que se acostumar com o tamanho do punho.
A mulher é uma construção
a mulher é uma construção
deve ser
a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor
particularmente sou uma mulher
de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida
digo que sou jornalista
(a mulher é uma construção
com buracos demais
vaza
a revista nova é o ministério
dos assuntos cloacais
perdão
não se fala em merda na revista nova)
você é mulher
e se de repente acorda binária e azul
e passa o dia ligando e desligando a luz?
(você gosta de ser brasileira?
de se chamar virginia woolf?)
a mulher é uma construção
maquiagem é camuflagem
toda mulher tem um amigo gay
como é bom ter amigos
todos os amigos tem um amigo gay
que tem uma mulher
que o chama de fred astaire
neste ponto, já é tarde
as psicólogas do café freud
se olham e sorriem
nada vai mudar –
nada nunca vai mudar –
a mulher é uma construção
O livro “Um útero é do tamanho de um punho” será tema do Clube #leiamulheres que acontece em Curitiba no dia 10.09. Mais detalhes aqui.