Nossa Senhora D`aqui

Por: Juliana Gomes | Em: 5 / agosto / 2015

Kafka em seu diário diz: “Não se fará nunca um menino entender que a noite fica bem no meio de uma história cativante, não se fará jamais que ele entenda, por uma demonstração para ele mesmo, que é preciso interromper sua leitura e ir se deitar.” E foi o que eu, uma mulher de quase 40 anos, fiz ao ler o novo livro da escritora paranaense Luci Collin, “Nossa senhora D`aqui”. Não dormi, passei a noite e metade de um domingo saboreando a leitura.

Inicialmente achei que poderia ser muito regional e mesmo eu sendo de Curitiba, não me apegaria ao texto, mas logo no início isso se desfaz quando ela cita os diferentes povo de Lá que vieram morar Aqui. Essas palavras Aqui e Lá se tornam realmente importantes ao pensarmos nos estrangeiros que vieram morar no Brasil, do sul ao nordeste do país. O livro não possui apenas um narrador e muitas vezes a mesma cena será contada por diferentes vozes, cada um a sua versão da história.

Frau Homera Kortmann, a protagonista, pode nos confundir com as impressões das pessoas sobre ela e como ela também se vê.  A família a vê quase como má, já as pessoas do lugarejo a veem como alguém agradável e gentil. Um protagonismo singelo, na verdade, e através desse labirinto familiar.

E a autora nos oferece um enredo que me lembrou muito o poema de Carlos Drummond de Andrade, “Quadrilha”:

“João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história”

O livro nos mostra personagens sem conexão num primeiro momento e apesar das nacionalidades diferentes o lugar acaba sendo o mesmo, há Indolá e Nê. Há a mulher poderosa que troca o marido pelo funcionário bonitão ou a solteirona que julga a moça que recebe visitas masculinas, mas esquece de que ela gasta em coisas que não vai usar para ocupar um espaço e se sentir menos solitária. Uma versão “quase” romântica de relacionamentos reais e atuais do mundo contemporâneo.

“Nossa senhora d`aqui” é um romance com nuances de dia a dia. Parece que estou vendo minha mãe catarinense e nossa família discutindo as coisas cotidianas, e brigando pelos motivos mais banais possíveis. Esse romance pode ser da minha vida, do meu vizinho chinês que sempre recebe visitas exóticas ou mesmo do porteiro, que precisa da identificação para deixar o morador entrar, mesmo que o conheça.

E como a autora nos diz no trecho abaixo, talvez um romance de silêncios:

“Espaços, também pode ser, ou silêncios entre a sacrossanta cortina da repartição, da visualização, do que é vira-latas, dos que não ganharão medalhas, dos que nem foram convidados. Dos que não sairão do lugar. E as palavras que não aparecem contra a luz. Sobretudo.

O mínimo da palavra é o som do gelo sobre a superfície.”

Nunca li os poemas da Luci e apenas seu romance. É preciso ler mais Luci e ter mais sopros de metáforas e analogias que parecem simples, e por isso mesmo são brilhantes.

No dia 06.08 haverá debate sobre o livro na Livraria Arte e Letra com a presença da autora. Saiba mais.

P.S. A foto é da estrada em Fraiburgo, interior de Santa Catarina, onde ainda mora boa parte da família da minha mãe.