Frankenstein

Por: Emanuela Siqueira | Em: 2 / julho / 2015

Na imagem pintada pelo retratista irlandês Richard Rothwell – nos idos do século XIX – a escritora inglesa Mary Shelley olha de forma terna o observadora, quase que impondo algum tipo de compaixão misturado com um certo tom de recato e inocência. Já seus ombros desnudos mostram a força de uma mulher um tanto aquém de sua época, longe de ser  parte de uma família sem posses ou uma figura feminina qualquer, ela mostra uma posição de resistência e ousadia diante do retratista.

É interessante que Mary Shelley tenha essa imagem amplamente usada quando se designa à sua figura de escritora romântica. Shelley passou por várias tragédias em seus poucos mais de 50 anos, mas também não fora tomada pelas fatalidades do destino. Nascida da relação entre Mary Wollstonecraft, conhecida como a primeira feminista à escrever sobre o direitos das mulheres no século XVIII, e do filósofo William Goodwin, um dos primeiros a esboçar sobre anarquismo, Shelley perdeu a mãe durante o nascimento e foi criada pelo pai de forma bastante liberal. Aos 16 anos conheceu o poeta Percy Shelley com quem se casou em seguida, sendo ele um importante incentivador durante os poucos anos antes de sua morte por afogamento.

Vivendo em meio à importantes figuras intelectuais, a novos ideais românticos e concepções de religião, estética e afins, a jovem Shelley sempre teve muito a seu favor para que se tornasse uma escritora ou  intelectual. “Frankenstein” é o seu primeiro romance, que na época que escreveu tinha apenas 18 anos, mas não foi o único, apesar da história da  literatura colocar  suas outras obras em lugares de certo apagamento. O livro foi escrito durante o verão de 1816, em que passando férias na Suíça, contando na vizinhança com a figura de Lord Byron, vivenciou períodos de chuvas incessantes por conta da erupção de um vulcão. Com períodos de longa estadia dentro de casa, o grupo se colocava para ler as instigantes histórias de terror alemãs, e empolgados com o estilo germânico de causar arrepios, se propuseram a fazer uma espécie de concurso de histórias de terror no qual Mary Shelley saiu vencedora. Quando todos foram aos poucos abandonando a ideia,  ela foi se tornando cada vez mais obsessiva em responder a si própria: “Que elementos compõem uma história que traga verdadeiro terror a um ser humano?”

“Porém o sucesso deverá coroar meus esforços. E por que não? Assim, eu terei ido longe, traçando um caminho seguro pelos mares sem estradas, sendo as próprias estrelas testemunhas de meu triunfo. Por que não prosseguir sobre o elemento selvagem, em todo o caso obediente? Que pode parar um coração determinado e a resoluta vontade de um homem?” (p.25)

A resposta das indagações de Mary Shelley foi escrever uma história sobre o ser humano e o poder da criação, acompanhado de um preço a ser pago nos mais variados prazos e intensidades de sofrimento. “Frankenstein” apresenta a ação sempre acompanhada da reação, muito antes de se teorizar sobre a obsessão humana em criar sem se preocupar com as consequências. Narrado pelo jovem e curioso inglês Walton, através de cartas destinadas à sua irmã Margaret, o enredo trata do cientista egocêntrico Victor Frankenstein, sua sede pelo novo conhecimento propiciado pelos então recentes séculos de intensas pesquisas e descobertas do corpo humano, e a criação de um ser que Victor rejeita assim que ele abre os seus olhos amarelados e de intensidade nula, não demonstrando nenhum tipo de estética favorável diante das perspectivas do criador.

“Oh! Frankenstein, não sejas justo com todos os outros para só espezinhares a mim, a mim que mais do que ninguém devo merecer a tua justiça e até mesmo a tua clemência e afeição. Lembra-te que fui criado por ti; eu deveria ser o teu Adão. porém sou mais o anjo caído, a quem tiraste a alegria, por algum crime cometido.” (p.109)

A história de “Frankenstein” se tornou parte do imaginário cultural e popular durante todo o século XX, principalmente através do cinema e o clássico de 1931 por James Whale, protagonizado por Boris Karloff. O grande horror da criação, o mote da revolta da criatura pelo criador que a rejeita, se tornou uma das imagens recorrentes durante a literatura considerada de ficção científica pelo menos nos últimos cem anos.

O poder desenfreado do conhecimento que leva à ruína era um dos pontos que norteava a produção romântica. Mary Shelley fora criada ao lado de grandes nomes da época e teve a oportunidade de ler obras como a usada de epígrafe do romance, “O Paraíso Perdido”, de John Milton. Tanto Milton como o poeta Coleridge – no livro é citado um trecho da belíssima “A Balada do Velho Marinheiro” – são percebidos em “Frankenstein” como fortes impulsos em Shelley explorar, do ponto de vista metafísico e crítico perante a ciência, as questões do ser humano e sua ânsia pelo poder. Mas não foi apenas nas suas leituras que Shelley se inspirou. Como excelente observadora, as descrições de ambientes e natureza são detalhados e de olhar apurado. Sem contar que é possível encontrar muitas das descrições procurando um pouco mais sobre as visitas que a escritora fez durante as férias que escreveu o romance.

Apesar de todas as afirmações sobre a formação e vida de Mary Shelley, ela não escapou às garras da crítica quando lançou a edição que contava com seu nome como autora. Na primeira versão de “Frankenstein”, lançado em 1818, a autoria foi dada como anônima e recebeu muitos elogios por seu suspense e crítica à ciência associada ao ocultismo que rondava o período. Lia-se nas entrelinhas do romance um tanto de filosofia através das longas divagações tanto de Victor como do monstro que questiona toda a sua existência, pautado no comportamento humano diante de seu semblante. Mas quando revelada a verdadeira identidade, Shelley – diante dos críticos – não passava de uma falsária, imitadora do pai e totalmente influenciada pelo marido e círculo do mesmo.

Mas a verdade é que o sucesso de “Frankenstein” era inegável e ele ofuscava os olhares da crítica da época justamente por ser escrito por uma mulher e não ter quase nada do que se esperava de um romance feminino. Pouco há de romantizações e olhares superficiais e sonhadores, pelo contrário, os três personagens que funcionam como pilares do enredo são bastante desafiadores, cultos, questionadores e vivem em intenso pesadelo com suas consciências. As divagações não são poucas e o leitor se vê enredado por uma série de questionamentos bastante pertinentes ainda hoje, onde depois de grandes guerras,  bombas atômicas e tensões entre países, culturas e etnias, ainda não sabemos o que o ser humano pode fazer com o poder dado pelo conhecimento.

“Ninguém pode conceber a variedade de sentimentos que lançavam para a frente, como um furacão, no primeiro entusiasmo do sucesso. A vida e a morte se me pareciam como limites ideais, que eu primeiro deveria transpor, para lançar uma torrente de luz em nosso mundo de trevas. Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e sua origem; muitas criaturas felizes e excelentes passariam a dever sua existência a mim. Nenhum pai podia reclamar a gratidão de um filho tão completamente quanto eu daquelas criaturas.” (p.59)

“Frankenstein”, quase que 200 anos depois, é uma leitura importante e atual porque Mary Shelley humanizou o monstro – este ser desajeitado, cruel e esteticamente deformado – mais que o próprio criador mesquinho e egocêntrico. Através da figura monstruosa sem nome, vamos descobrindo com o desenrolar das situações que ele desenvolveu – vale ressaltar que por si só – um conhecimento próprio através de leituras e observações. A única cólera desse ser vem da rejeição diante de quem seria “seu pai” e daqueles em que se aproximam e se assustam diante da aparência longe de uma normalidade. O criador representa toda uma humanidade cegada e sedenta por um poder em boa parte das vezes apenas simbólico e muito vingativo.

Mary Shelley deu origem a um gênero literário em uma época em que muitas fronteiras da Literatura nem existiam. As divagações intermitentes, sejam de Walton, Frankenstein e da criatura, são simples e profundas, fazendo com que a autora conseguisse sintetizar em um único romance todo um zeitgeist do momento. Todas as vezes que alguém sentar em um cinema lotado ou ler um livro sobre experiências com monstros verdes geneticamente modificados, robôs que ultrapassam as leis da robótica e seus criadores ou mesmo um cãozinho de estimação que retorna à vida pelas mãos de uma criança, sempre haverá um pouco da pena de Mary Shelley por lá.

Ilustrado por Carolina Maia