Terra dentro

Por: Emanuela Siqueira | Em: 7 / fevereiro / 2021

No Brasil, ser de dentro é diferente de ser de fora porque um país tão grande, colonizado e ocupado do mar para dentro só poderia conter multitudes. Há muitas histórias e pessoas que se embrenham nos interiores desse país, assim como muitas paisagens não pertencem à coordenadas geográficas específicas e parecem se repetir tanto no sul como no norte. Terra dentro (Editora Reformatório, 2020), de Vanessa Vascouto, é um romance que se constrói nesse entre-lugar, se ocupando brevemente de uma terra que não pertence a nenhuma das personagens, porém as afeta de forma profunda e fatal.

Mirna, Rita e Mosquito são três irmãos que correspondem a vozes distintas e alternam capítulos de Terra dentro. Vamos acompanhando o ponto de vista de cada um e as relações entre si, assim como os elementos que os perseguem e marcam ritmo na narrativa: a goteira, os lençóis e as folhas secas. Estes últimos são os dispositivos que condicionam a existência dessas pessoas na ficção, dando materialidade para que não se tornem estatística sem rosto. Aqui não há alguém que conte a história por eles, são suas próprias vozes que se enunciam, sem cortes ou censura.

A liberdade de existência dessas personagens “num pedaço de terra que nunca foi da gente” (p.13), como diz Rita, é o que as conduz a história de violência de forma afetiva pois há muitas questões que as conecta nesse lugar. Em um sítio de plantação de batatas, uma pequena comunidade vive amores e violência, a presença do alcoolismo, da falta de diálogo, assim como a simplicidade de amores de infância e desejos. Parece que tudo é negado a essas pessoas e da mesma forma que existe o afeto, existe a pulsão de morte. 

No evento online de lançamento do livro, Vanessa conta à Tammy Ghannam, do LiteraTamy, que mesmo não se sentindo pertencente ao lugar de onde vem – interior de Santa Catarina – ela sempre acaba voltando para esse espaço afeto-geográfico quando escreve. Isso ressoa de maneira muito interessante nas vozes que compõem esse coro de tragédia e despertencimento. Rita, Mirna e Mosquito são três tipos de personagens que não seriam facilmente percebidos porque só existem em lugares de dentro, de espaços esquecidos, longe de grandes cidades. Talvez seja justamente por isso que as vozes parecem atemporais e, como diz Mosquito a certa altura, “eu odeio tanto aqui que vou ficar aqui pra sempre”. (p.87). 

Não apenas Mosquito, mas as irmãs também vão ganhando contornos fantasmáticos conforme vamos prestando atenção na história que se desenrola. É como se os três irmãos vagassem invisíveis, presos em um passado que se confunde com a natureza do espaço. Sejam as batatas que dão algum sustento ou o caquizeiro, lugar de dor e afeto, a fauna do lugar ajuda nessa sensação de atemporalidade. Por exemplo, Rita diz “o mar que eu nunca vi” (p.20) quando pensa no frescor da água no calor e emenda comentando sobre seu namorado ter visto o mar uma vez e compara a sua pele “escura e seca igual chão sem chuva” com a ideia de uma pele branca, simbolizando uma vitalidade de um lugar que não é onde ela está.

“Uma família inteira pra ser a desgraça da minha, mas também senão fosse por eles tinha sido por outra gente” (p.25) é o que diz Mirna, a voz mais racional das três que narram a história. A materialidade da morte e a certeza da finitude faz com que a tragédia se torne um tipo de história oral em Terra dentro, como se a trajetória dessa família também fosse um causo contado por muitas gerações. 

Dividir um afeto de espaço geográfico com um livro é uma sensação vertiginosa, uma espécie de desequilíbrio. É como reconhecer vozes que poderiam estar na vizinhança da infância ou mesmo as tragédias contadas no pé de portas de casas de madeira, dessas que passam o frio barulhento pelas frestas. Ler Terra dentro é uma sensação de voltar para lugares dos quais fugimos há anos, de olhar para brasileiros que no fora (na realidade) são estatísticas mas que neste livro são vozes que podemos ouvir nas páginas dedicadas a contar suas dores. “Isso é história, só que história a gente ouve e acredita.” (p.42) é o que diz Rita, como não acreditar?

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