A Casa e outros poemas

Por: Sylvia Tamie Anan | Em: 27 / março / 2019

Enchi minhas malas breve

com roupas de solidão:

quando é hora de partida,

brisa, vento de verão?

Vi Ecléa Bosi pessoalmente apenas uma vez, em um evento do curso de psicologia na universidade. Já habituada às leituras de trabalhos como Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos e Cultura Popular e Cultura de Massa: Leituras de Operárias, o calor de sua voz e a tranquilidade que transmitia eram familiares para mim. Mas ficou igualmente na lembrança a radicalidade das suas ideias, a admiração por Simone Weil – que ela biografou e cujo trabalho apenas conheci por causa dela – e, claro, a profunda compreensão do enraizamento social dos processos psicológicos.

Ao falecer, em 2017, a professora deixou para trás um caderno de poemas, guardado numa pasta, que surpreendeu a família ao ser encontrado: mesmo os mais próximos desconheciam essa produção, preservada com toda a modéstia. De certa forma, ler A Casa e outros poemas é compartilhar com a autora esse espaço privado que toda mulher conhece muito bem: um canto habitado por flores e pássaros, pela memória de lugares e entes queridos e pelos versos dos poetas preferidos – Emily Brontë e Edith Sitwell, Raimundo Correia e Garcia Lorca, Cecília Meireles e Rosalía de Castro.

Não se espere, entretanto, amadorismo ou poemas mal-acabados. Seja em redondilha (“Cantiga de Roda”), em decassílabo (“A Cidade Barroca”) ou em verso livre (“Retrato”, uma evocação de Cecília), cada uma das páginas da pequena coletânea demonstra tempo de reflexão, idas e voltas, e os ecos profundos dos mais diversos acontecimentos. Assim, encontramos a memória de infância (“Hoje afinal”), o tema clássico do ubi sunt? (“Em Outubro”), a interrogação pela própria finitude (“Viagem”), mas também a dor solidária com as vítimas dos ataques de napalm (“As crianças do Vietnã”), do racismo (“A História de James, o Teimoso”) e de todo tipo de sofrimento social (“O Cão Antropomorfo”). Com frequência, a memória pessoal se mescla ao fato histórico (“Elegia”).

Trata-se de um equilíbrio delicado, que só se encontra com a sabedoria dos anos. É nítido como cada verso, cada estrofe foi refletida muito longamente, como se só merecessem o papel as palavras sedimentadas pelo tempo. Em alguns momentos, a gente se percebe olhando há muito mesmo para a mesma página, porque alguns poemas ganham um tom enigmático, quase oracular: “Velho Centauro”, por exemplo, tem uma epígrafe de Edith Sitwell (“Then time froze”, verso de “Canticle of the Rose”, um dos seus poemas sobre a bomba atômica) e, nas suas quatro estrofes, descreve a sensação de um tempo congelado – trata-se do tempo físico, das estações, do tempo histórico?

Publicada no ano passado, A Casa e outros poemas parece não ter época. Seus poemas não trazem data, e até onde sabemos podem ter sido escritos durante toda a vida da autora. Apesar de algumas referências a momentos históricos – a bomba de Hiroshima, a morte de Cecília Meireles –, trata-se na verdade de um livro de uma vida inteira, que acolhe o leitor como a sala de estar de uma senhora que convida para um chá acompanhado de histórias e canções, mas que nunca se esquece das dores do mundo externo, muito pelo contrário: ela parece nos pedir para substituir a indignação (tão fácil nesses dias) pela compaixão. Em tempos tão sombrios, os poemas de Ecléa Bosi são um descanso, ainda que não um descanso alienado da realidade.

 

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