Quarenta dias

Por: Fernanda Gehrke | Em: 9 / maio / 2016

“À toa, como minha xará pelos caminhos de Wonderland, zanzei por bosques e gramados até dar num laguinho alongado, com um repuxo de água no meio, junto à margem uma fileira de pedalinhos em forma de aves, não, Barbie, não eram os flamingos da Rainha e nem estavam sendo maltratados, eram cisnes, falsos mas brancos cisnes, sem dúvida, e àquela hora ainda descansavam tranquilos.”

Em “Quarenta dias”, publicado pela Alfaguara, Maria Valéria Rezende inova na linguagem. A protagonista e narradora da obra, Alice, lembra em muitos momentos a sua “xará”, como mencionado no livro, em sua viagem pelo país das maravilhas.

A narrativa é dessas que começam e, quando nos damos conta, já terminou. Alice sofre e Maria Valéria Rezende faz com que esse sofrimento se torne algo poético, sutil e até cômico em algumas passagens. Tudo começa quando a personagem se muda de João Pessoa, na Paraíba, para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

A mudança acontece a contragosto, para que Alice pudesse ajudar a cuidar do neto que estava a caminho. A saudade da antiga vida e algumas decepções fazem com que a personagem saia vagando pelas ruas, sem rumo.

A inovação está na forma de contar a história, como se nós, leitores, fôssemos um caderno antigo com uma boneca Barbie na capa, a quem a personagem relata algumas de suas peripécias durante quarenta dias vagando por Porto Alegre, sem rumo, sem voltar para o apartamento que não reconhecia como seu. Para escrever o livro, a autora realizou um laboratório e passou alguns dias entre moradores de rua.

De forma sutil, também é possível identificar, na narrativa de Maria Valéria Rezende, algumas críticas ao consumismo, à publicidade e à correria do dia a dia, em que todos parecem estar sempre atrasados, tal qual o coelho branco da outra Alice. Como quando ela reclama do aumento do volume, na TV, durante os comerciais:

“Ontem cochilei no sofá, logo que começou a novela, mas acordei assim que entrou o primeiro intervalo comercial, com vários decibéis a mais, como sempre, pra gente ouvir, lá da cozinha ou do banheiro, os gritos ameaçadores de Promoção arrasadora, Só amanhã! e outras agressões que, não sei por quê, eles acham que vão fazer a gente sair correndo pra comprar qualquer troço.”

Enquanto relata sua aventura, Alice percebe palavras que estão entrando em desuso e pensa em escrever uma lista desses vocábulos. É uma das ideias que surgem durante sua peregrinação por Porto Alegre, e justamente nesse momento ela menciona o poeta gaúcho Mario Quintana:

“Quando eu estiver sem fazer nada, só olhando meu futuro neto dormir, vou catar e fazer o meu dicionários de palavras aposentadas, né, Mario Quintana?, ao longo da minha vida… as palavras que sumiram de repente… tem de tudo: já reparou, Barbie, que ninguém mais ‘calça’ os sapatos ou as meias e nem ‘veste’ a camisa, a calça, o vestido? Todo mundo agora só ‘coloca’ sei lá o que for, onde for…”

Se o livro já estava na minha lista, a autora ganhou meu coração quando li, ainda em 2015, outro livro dela, “O vôo da guará vermelha”, prefaciado pelo Frei Betto, que admiro há muito tempo. Eu devorei os dois livros da autora e não vejo a hora de lê-la novamente. Recomendo muito. Virei fã.

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